Kiko Rieser, especial para o Aplauso Brasil (kikorieser@gmail.com)

Talvez por ser a arte uma expressão de pessoas inquietas, que se diferenciam da massa informe conformista e apascentada, ela é conhecida por proporcionar ambientes plurais, onde cabem todos e as minorias são abrigadas com certa naturalidade. Provavelmente pelos mesmos motivos, é comum o tema do preconceito voltar à baila em obras de diferentes linguagens.
O teatro, especial ambiente intimista e quase sempre muito diverso no que diz respeito a seus freqüentadores, costuma ser uma das artes que mais se dedicam a este assunto. Porém, essa moral da contemporaneidade, que prega a aceitação irrestrita das pessoas e a tolerância como valor de face da civilidade, ainda vem, muitas vezes, mal disfarçada em peças que se pretendem exemplares. Embora combatendo a moral arcaica, dos ditos conservadores, acaba sendo tratada à moda antiga, ou seja, pela narrativa teatral.
Cachorro morto, espetáculo escrito e dirigido por Leonardo Moreira, trata da Síndrome de Asperger, similar ao autismo e geradora de muitos preconceitos para seus portadores. Mostra, porém, habilidades e limitações de um portador da Síndrome, sem se preocupar em divulgar uma tese ou em passar uma lição, discutindo o tema sem transmitir conclusões já mastigadas ao público.

Assim como os autistas, os portadores de Asperger criam uma espécie de mundo paralelo, uma ficção onde se entrincheiram e vivem com o mínimo de contato com as outras pessoas. Têm um ritmo diferente e não gostam de ser tocados. Isso, no espetáculo, é transmitido não apenas em seu conteúdo, mas formalmente.
Por isso, o protagonista, dentro da peça, é seu autor. Ele cria a narrativa que irá contar para o público e o faz do modo que lhe apraz. Dispõe os fatos na seqüência que lhe parece mais lógica, omite da cena personagens de que não gosta, conta o fim da história quando lhe vem à cabeça fazê-lo, enfim, faz tudo para que sua obra lhe pareça agradável, como elucida em determinado momento. Somos convidados a entrar em seu mundo, pois talvez só ali seja possível encontrá-lo de fato.
Conforme transcorre a ação, vamos conhecendo-o melhor. Vemos sua imensa capacidade em lidar com os números, fazendo contas dificílimas com extrema rapidez e precisão; sua argúcia no caso que dá nome à peça, da morte do cachorro, em que empreende uma investigação como detetive e acaba por solucionar o crime; seu caráter determinado e obstinado, que por vezes se torna obsessivo; sua violência e irritabilidade fáceis; e uma certa aparência de frieza ao impedir qualquer contato físico.
Não há maniqueísmos, já que não há veiculação de uma moral, o que faz com que a personagem não seja heroica, mas mostrada com todas as suas contradições, como qualquer outra pessoa, e é por essa realidade tangível que se sublima, ao menos em potencial, a distância entre qualquer espectador e o protagonista.
A obsessão do protagonista, tão importante e definidora de muitas de suas características, como a facilidade com matemática, é representada pelo cenário do diretor, composto por um sem-número de post-its (de cor amarelo fosforescente fortíssimo) amontoados, e pela multiplicação do protagonista-narrador em cinco, sendo representado por todos os atores.
Enfileirados na frente de uma parede, os intérpretes não interagem entre si e mantêm certa distância entre um e outro, respeitando os espaços individuais, suficientes para que cada um se mantenha em sua redoma imaginária.
Os atores interpretam o protagonista sem composições iguais – inclusive, a personagem é de certa forma anônima, pois cada ator adota seu próprio nome ao interpretá-la –, mas mantendo em sua caracterização física alguns detalhes fundamentais, como a face inocente e uma postura corporal levemente arqueada, desenhando-se em torno de um centro que está dentro de seu próprio corpo, ensimesmando-se e fechando-se em alguma medida ao mundo exterior.
Cumprem, também, a difícil tarefa de equacionar a emissão da fala para que, a um só tempo, seja clara, límpida e compreensível para o público e representante de uma retórica que se destina mais a quem fala do que ao interlocutor, num fluxo verbal extremamente rápido e que praticamente prescinde do filtro selecionador que diferencia o que é pensado do que é dito.
FICHA TÉCNICA
Direção e Dramaturgia: Leonardo Moreira
Elenco: Companhia Hiato (Aline Filócomo, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Thiago Amaral e Bruno Freire)
Animações Digitais: Gustavo Borrmann
Concepção de Cenário: Leonardo Moreira
Iluminação: Marisa Bentivegna
Música Original: Gustavo Borrmann
Figurinos: Willy
Técnica: Fernanda Bernardes
Produção: Companhia Hiato
SERVIÇO
Horário: Terça e quarta, 21h.
Data: 02 de fevereiro a 31 de março de 2010
Preços: R$ 10,00.
Duração: 60 min.
Local: Teatro Imprensa
Endereço: Rua Jaceguai, 400 – Bela Vista – Centro
Tel: (11) 3241-4203