Afonso Gentil, para o Aplauso Brasil (redacao@aplausobrasil.com)

SÃO PAULO – Bastante cultuado em seu país pela visão afetuosa, senão idílica, dos habitantes das pequenas cidades do interior profundo da América do Norte no início do século vinte, o escritor e dramaturgo Thornton Wilder (1897/1975) deixou um currículo enxuto, mas, rico em especulações metafísicas do sentido da Vida, o suficiente para merecer dois prêmios Pulitzer, o primeiro por Nossa Cidade, escrito em 1938. O hino à vida, em tons impressionistas, de Wilder, também ganhou fama pela revolucionária, à época, reforma cênica, substituindo as realísticas paredes cenográficas pela liberdade geográfica da narrativa épica, tendo o palco nu e iluminado como plataforma da presença mágica dos atores em ação dialógica dramática.

O cotidiano dos habitantes da pequena e fictícia Grover’s Corners, “exatamente igual às inúmeras outras cidades norte-americanas” é retratado pelo olhar curioso de Wilder, com certeiras observações do comportamento das várias camadas sociais da cidadezinha beirando sempre o lírico inerente à vida pastoral. O autor não fantasia a realidade, debruçando-se sobre pessoas cujos anseios se resumem em sorver a vida, mais que questioná-la.
Para o processo épico da ação dramática criou – grande sacada! – o “Diretor de Cena” agindo, conduzindo as personagens e fazendo comentários sobre o presente e o futuro da cada uma, num recurso que Bertolt Brecht, na Alemanha nazista, exploraria com seu teatro didático dialético. Pelo inesperado da reforma cênica, a novidade transformou texto e autor como ícones da modernidade, esta agora designada de forma esnobe como “contemporaneidade”.
O frescor do retrato não se esmaeceu, quer pelo conteúdo como pela forma: a delicadeza da abordagem recria um mundo à beira da extinção pelas radicais mudanças comportamentais ao longo do século XX, que tornaram a vida neste planeta um constante espanto.
A RECONSTRUÇÃO DO TEXTO PELO DIRETOR ANTUNES FILHO
Nas mãos do nosso diretor maior, apesar da reverente obediência aos diálogos, do corte de todo o 2º ato, da inserção de uma ou outra passagem de crítica ou análise irônica do patriotismo do povo norte-americano, Nossa Cidade ganha cores sombrias sem perder de vista o sonho de uma volta àquele passado de saudáveis maneiras de convivência.

O gênio de Antunes Filho nesta atual versão se faz presente na inusitada e incontrolável inquietação político social , ampliando o flagrante de Wilder e dando-lhe dimensão apocalíptica na sua feroz imprecação antibélica ao jogar a ação por todo o tumultuado século vinte, de sucessivas guerras globais e regionais, em que mal se disfarça suas falsas ideologias impregnadas de suicida sanha desintegradora dos povos do mundo.
O ELENCO
Impressiona a coesão do elenco na busca da perfeição técnica vocal, superando com garbo o desafio proposto pelo diretor na transposição daquelas “vozes distantes” no tempo e no espaço para ouvidos modernos, num realismo cuidadosamente editado. Alie-se a notável composição física criando uma diversidade de tipos humanos, extraindo de cada um a verdade cênica que cria a necessária interatividade com a plateia. Grande momento criativo temos na figura fisicamente fragilizada e doloridamente lúcida do “Diretor de Cena” de Leonardo Ventura, num trabalho de perfeita simbiose entre os anseios do diretor e da sensibilidade do ator.

Todo o trabalho dos grupos CPT/SESC e Teatro Macunaima traduz o alto nível profissional a que fomos acostumados através de sucessivas boas montagens. Por sua vez, a reconstrução do original de Thornton Wilder, de extrema inteligência e senso de oportunidade do diretor, explicitando os anseios pacifistas de todos aqueles que respeitam o planeta como a única opção de sobrevivência, fazem do atual cartaz do Teatro SESC/Anchieta um dos mais importantes de tempos recentes.
Serviço:
NOSSA CIDADE / Teatro Anchieta/ rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque – Centro – 3234-3000 –sexta e sábado 21 h. Domingos 18 h / Ingressos R$ 6,40 a R$ 32,00/ 16 anos / 100 minutos/ até 8/12.