SÃO PAULO – Anexar o sufixo “preta” ao clássico da dramaturgia brasileira Gota D’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, vai muito além da mera indexação de um substantivo: o diretor Jé de Oliveira imprime à montagem a adjetivação racial imposta pela palavra, tornando, assim, o musical numa espécie de grito dos negros e pobres – “tratados como negros” – subjugados pela classe dominante forjada, em sua grande maioria, por brancos – “ou quase todos brancos” – e financeiramente abastados. Esbanjando talento, a encenação faz um retrato nu e cru de um problema social que, mais de 40 anos em que foi escrita a peça, ainda não foi superado. Em cartaz na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo até o dia 30, o espetáculo também foca, de maneira muito feliz, na questão feminina, colocando Joana como uma “profetiza feminista”.
É interessante realizarmos um resgate histórico antes de nos debruçarmos sobre a trama da peça: mesmo com a liberdade assinada pela princesa Isabel em 1888, o negro, trazido da África e escravizado por mais de 400 anos, não teve nenhum ressarcimento ou comprovações de qualificação pelos serviços que foi obrigado a prestar (repare só e veja se não é irônico o que hoje se repete no Brasil com o trabalhador que perde os direitos trabalhistas e sai dos serviços prestados com uma mão na frente e outra atrás), empurrando-o, assim, à moradias precárias feito os cortiços, os únicos locais que eles podiam pagar. Derrepente na virada do século XIX para o XX, a capital federal (Rio de Janeiro) decide realizar uma reforma urbana e sanitária colocando os cortiços abaixo, mais uma vez sem se preocupar com quem morava no local, oferecendo uma nova possibilidade de moradia. Foi o estopim para que esses negros e pobres, “quase todos negros ou quase brancos, pobres e mulatos, tratados como pretos”, ocupassem os morros cariocas e dando inicio às comunidades ou favelas.
Aí se localiza o pano de fundo de Gota D’Água {Preta}: ambientada nos anos 1950, a trama traz os moradores do conjunto habitacional Vila do Meio Dia tendo que escolher entre comer ou pagar as prestações da casa própria para Creonte, este, o dono do empreendimento que oferecia casa à prestações, entretanto os juros abusivos repetem um esquema de eterna escravidão, agora de papel passado e tudo, em que Creonte, senhor do dinheiro, explora os moradores do conjunto habitacional.
Como tema principal da tragédia musical de Chico Buarque e Paulo Pontes está Joana, também moradora da Vila, cujo o homem, Jasão, a trocou pela filha de Creonte, Alma. Qualquer coincidência com a heroína de Eurípedes, Medeia, não é mera coincidência, Buarque e Pontes beberam nas fontes da mitologia grega, transportando para o Brasil e para a realidade social da época (1975) – e, pasmem: mais atual do que nunca! – quando os trabalhadores eram desprezados (como se isso tivesse mudado) pelos donos do capital. Voltando ao assunto principal, Joana, assim como Medeia, representa muito além do que o orgulho ferido de uma mulher mais velha que é abandonada pelo seu amante mais jovem, por uma mulher mais nova do que ela. Como Joana diz em uma de suas falas para Jasão: “essa ansiedade que você diz, não é coisa minha, não, é do infeliz do teu povo, ele sim, que vive aos trancos, pendurado na quina dos barrancos…”, ou seja, ela é uma espécie de emblema de toda uma classe social rejeitada e maltratada pelos senhores do dinheiro.
A surpresa da montagem de Jé Oliveira é forma com que ele forja a identidade de Joana, que aparece como uma profetiza feminista, que pode ser resumido pela seguinte resposta da heroína às vizinhas: “Que venha e volte, entre e saia, que monte e desmonte, que faça e desfaça… mulher é embrulho pra esperar, sempre esperar… uma espécie de poltrona que assume a forma da vontade alheia.”.
Todas as nuances da personagem só ficam claras graças ao entendimento e talento com que a atriz Juçara Marçal constrói seu papel. Sem negar quaisquer qualidades de outras Joanas, (como Bibi Ferreira, Cleide Queiroz, Laila Garin, entre outras) Juçara traz em sua composição o ineditismo e a força necessária para o desempenho desejável.
Na pele do sambista Jasão, Jé de Oliveira imprime uma tonalidade dicotômica, beirando entre o ingênuo sambista que, feito tantos outros sambistas de nossa história musical, é “capturado” pela falsa ideia de que sua arte o levará a prosperidade e o “traidor” de suas origens. O que resulta numa maior força em sua reação na cena final.
Rodrigo Mercadante, o Creonte, também é um dos destaques do elenco conciso de Gota D’Água {Preta}, com suas inflexões que lembram tantas figuras arrogantes de nossa política atual, uma retórica neoliberalista muito próxima de nós e uma dicção exemplar: quem dera todos os atores recorressem ao exercício do bem falar!
Aysha Nascimento chama atenção por sua desenvoltura corporal, sobretudo quando encarna um orixá, sua Corina também é presente e firme.
Os cenários e figurinos são bastante simples. A orquestra que está em cena o tempo todo, além do Dj, se não chama atenção, também não atrapalha a cena. A Iluminação de Camilo Bonfanti responde aos desejos do espetáculo.
Enfim, Gota D’Água {Preta} é um dos espetáculos mais interessantes da temporada 2019. Mas atenção: corra por que ele encerra a temporada no dia 30 de março.
GOTA D’ÁGUA {PRETA}
sextas e sábados, às 20h, e domingos, às 19h – 150min – 14 anos -Sala Jardel Filho
R$30,00- a venda estará disponível na bilheteria em seu horário de funcionamento (terça a sábado, das 13h às 21h30, e domingos, das 13h às 20h30), – preço popular: R$3,00 (dia 17/3, domingo) – serão vendidos apenas dois ingressos por pessoa, na bilheteria do CCSP, que será aberta uma hora antes do início do
espetáculo – os ingressos não estarão disponíveis pela internet