Michel Fernandes, do Aplauso Brasil (michel@aplausobrasil.com.br)

SÃO PAULO – Gota D’Água [a seco], adaptação do diretor Rafael Gomes do musical de Chico Buarque e Paulo Pontes, vai muito além do acréscimo de outras músicas de Chico Buarque, da condensação de personagens – em cena estão Joana (Laila Garin) e Jasão (Alejandro Claveaux) que, em determinados momentos, dão voz a Creonte e Alma, entre outros personagens – ou da promoção de reflexões sobre a sedução pelo poder e a fama, da qual Jasão é vítima. O espetáculo traz uma Joana que é a voz de sua comunidade, tem como vértice o estabelecimento do diálogo com questões, infelizmente, contemporâneas e políticas como a falta de ética dos detentores do capital em relação aos mais humildes. A releitura de um dos mais belos e poéticos textos de nossa literatura dramática fica em cartaz só até o dia 30 no Teatro Faap.
É uma pista rasa e facilmente reconhecível do mito de Medeia a de que ela se trata daquela mãe que, abandonada por seu homem, vinga-se do mesmo dando cabo de seus filhos e de sua rival, usurpando a possibilidade de sua paternidade. Eurípedes, ao tratar do mito em Medeia, evidencia que a heroína deixa Corínto rumo à Cólquida, sua terra de origem, por questões bem mais complexas que a dor do abandono amoroso. A fúria de Medeia vai além da infidelidade de Jasão, é pela injustiça de que é vítima, por ser descartada por aquele que a fez trair sua pátria e matar seu irmão. Sua fúria é por ser banida da terra que a acolheu, quando “a perita dos remédios” lhe foi conveniente por ajudar a roubar o Velocino de Ouro.

Chico Buarque e Paulo Pontes transpuseram a ação de Corinto para uma favela do Rio de Janeiro, Creonte é um empresário, Jasão é um compositor, Joana (a Medeia) uma lavadeira, mestre Egeu trata-se de um líder do morro que incentiva os moradores dos barracos a não pagarem Creonte pelas exorbitantes prestações cobradas pela casa própria, enfim, temas que precisavam ser discutidos numa sociedade em que as diferenças sociais, a opressão dos detentores do poder aos pobres era abusiva. O problema é que mais de 40 anos da estreia da peça se passaram e nada mudou. Ao contrário, a perversidade midiática sublinhou as diferenças, colocou os avanços sociais conseguidos no banco dos réus, carregou o representante dos empresários ao trono, incentivou a mentalidade maniqueísta etc., e quem anda para trás são os pobres mortais.
Nesse contexto (trágico contexto!), Rafael Gomes reeditou a peça de Buarque-Pontes e trouxe à cena o musical “inédito” Gota D’Água [a seco]: acrescentou músicas da discografia de Chico (com a excelente colaboração de Pedro Luís, o diretor musical), dando espaço à cenas antológicas como na sequência em que Joana, cantando Cálice, caminha sobre a laje rumo ao suicídio não concretizado; colocou as falas do povo na boca de Joana, o que dá à personagem o status de “voz coletiva”, ou seja, o que ela esbraveja é o coro do descontentamento de seus pares. A ambição, um dos motivos de Jasão abandonar Joana para casar-se com Alma, filha do rico empresário Creonte, ganha, também, tintas de quem deseja a fama – não à toa que a festa de suas bodas será seu show. Duplamente talentoso, Gomes assume direção dinâmica e inventiva que utiliza a cenografia e a iluminação como elementos criadores de outros ambientes dando amplo significado à teatralidade. Exemplo disso se dá na cena em que Joana caminha em linha reta, rumo à boca de cena, sob uma luz que ilumina somente o corredor em que caminha a passos lentos enquanto interpreta, com a pungência de quem sangra por dentro, Cálice até à beira de cair do palco e só não se suicida por frações de segundos.
Laila Garin dá à Joana o peso do sofrimento – o que é reforçado por seu

figurino (belo trabalho de Kika Lopes), uma longa e pesada saia que arrasta as angústias dos habitantes daquela comunidade –, ela é a cuia de barro que caiu no chão e se esfacelou, mas insiste em permanecer. Entretanto, Laila dá uma leitura peculiar à Joana: a mulher intempestiva – inclusive há estudos que associam Joana a Iansã, orixá dos ventos, raios e tempestades – e prestes a atacar com violência, como enxergamos a expressão de fúria da personagem, ganha tons mais amenos. Garin traz razão em sua interpretação, mesclada à sensibilidade desesperada dos que são alvos de infinita injustiça. O infanticídio seguido do suicídio ganha lucidez daquele que sabe que o fundo do poço chegou. A contenção e controle com que a atriz constrói a personagem dá um contraste interessante entre o conteúdo e a forma do que é dito. A dor, a fúria expressa no texto é dita plena de verdade, dando um prisma menos impulsivo e mais cheio de camadas, pois a dificuldade em compreender o que vive, se funde a não aceitação de que prevaleça aquela realidade no mundo em que vive.
A virilidade que Alejandro Claveaux imprime em seu Jasão explica o porquê do personagem despertar paixões das mais ardentes. O contraste de seu canto que, diante da soberana voz de Laila Garin, serve perfeitamente à ideia de sedução por dinheiro e fama, já que Creonte pagará pro seu samba “pingar de boca em boca”.
André Cortez criou um cenário plural, ao mesmo tempo essencial, simbólico, simples, dinâmico e com a impecável iluminação de Wagner Antonio, reserva momentos de rara beleza. Formado por estruturas de ferro cinza – remetendo aos blocos de cimento ou a andaimes que denotam a precariedade das casas mais humildes – que se movimentam graças às rodas que as sustentam, adornadas com pequenos vitrôs com vidro opaco e luzes amareladas, feito a luz baixa das favelas, os garrafões de plásticos vazios completando a simbologia evocada pela arquitetura cênica, servem ao diretor Rafael Gomes ampliar a utilização do espaço que, mesmo que ocupe um palco à italiana, torna-se uma instalação.
Esses são apenas alguns dos motivos pelos quais eu indico que não percam Gota D’Água [a seco].
GOTA D’ÁGUA [A SECO]
De CHICO BUARQUE e PAULO PONTES
Adaptação e direção: RAFAEL GOMES
Com LAILA GARIN e ALEJANDRO CLAVEAUX
Músicos: ANTÔNIA ADNET, DUDU OLIVEIRA, ELCIO CÁFARO, MARCELO MULLER e PEDRO SILVEIRA
Direção Musical: PEDRO LUÍS
Cenografia: ANDRÉ CORTEZ
Iluminação: WAGNER ANTÔNIO
Figurinos: KIKA LOPES
Direção de Produção: ANDRÉA ALVES
Diretor assistente e direção de movimento: FABRICIO LICURSI
Assistente de direção: DANIEL CARVALHO FARIA
Design de som: Gabriel D’Angelo
Preparação e arranjos vocais: Marcelo Rodolfo e Adriana Piccolo
Assistente de direção musical: Antônia Adnet
Assistente de cenografia: Rodrigo Abreu
Coordenação de Produção: Leila Maria Moreno
Produção Executiva: Monna Carneiro
Marketing Cultural: Ghéu Tibério
SERVIÇO
Sextas e sábados, às 21h. Domingos, às 20h.
Ingressos: Sextas e domingos R$ 80. Sábados R$ R$ 100.
TEATRO FAAP
Rua Alagoas, 903
Duração: 90 minutos
Classificação etária: 14 anos