Michel Fernandes, do Aplauso Brasil (michel@aplausobrasil.com)

SÃO PAULO – Logo no início do espetáculo Canto Para Rinocerontes e Homens – que o Teatro Osso apresenta, às 20h, a partir de sábado (7), no Galpão do Folias – algumas referências que nortearão o trabalho estético do diretor Rogério Tarifa ficam claras: o didatismo e a assmida teatralidade brechtianas, a força que os símbolos ocupam na ação e a visceralidade da interpretação (em que o corpo toma o lugar da simples articulação das palavras) seguindo uma trilha artaudiana, o ditirambo grego – em que um coro de intérpretes cantavam e dançavam para narrar sua história – semelhante ao uso que o Teatro Oficina faz da música e do coro etc. Essa amplitude de referenciais dão dinamismo, poesia e, ao mesmo tempo, uma mensagem objetiva: é preciso “cantar”, “vestir” a pele macia da resistência para não se tornar um “rinoceronte” ou um humano bestial.

Tomando como ponto de partida o clássico contemporâneo O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, Canto Para Rinocerontes e Homens alarga a discussão de como o homem pode esquecer um humano para se metamorfosear em animal embrutecido, utilizando esse questionamento para dialogar com assuntos que rondam e chifram violentamente, tal qual os rinocerontes de origem africana, os homens que esbarramos por aí.
Para o processo de criação, o diretor Rogério Tarifa, contando com a excelente preparadora corporal Érika Moura que deu suporte instrumento-físico `à trupe, sugeriu ao elenco que criasse seu próprio solo associando sua transformação em rinoceronte a algum tema que faz parte de nosso cotidiano.

Sendo assim, temas como o trabalho como fonte única de dedicação, desumanizando o trabalhador que não encontra espaço para desenvolver sua parcela pessoal/ individual (os que comandam o dinheiro chegam a achar que “uma hora de almoço é demais”) está impresso na pele de Renan Ferreira que interpreta o operário Jean. A preparação corporal evidente faz do solo executado pelo ator um pungente flerte com o teatro-dança ou, simplesmente, vemos uma dança que expressa mais que mil palavras.
O discurso incisivo do chefe, Sr. Papillon (Guilherme Carrasco), ressaltando as vantagens de se tornar um Rinoceronte uniformizado recorda a retórica dos políticos que, infelizmente, convence pessoas cegas aos fatos históricos – e respectivos desdobramentos reflexivos que isso deveria gerar – pelos holofotes de um discurso que incita à agressividade.

Murilo Basso vive Dudard que gera um momento cruel e assustador ao antepor à sua metamorfose um discurso de um pastor evangélico ou de qualquer homofóbico que acredita que a homossexualidade do filho pode ser convertida com uma boa surra na infância do mesmo (Marcos Feliciano e Jair Bolsonaro me vieram à mente e senti um terrível nojo de quem aplaude esse discurso retrógrado), culminando num derramamento de sangue.
Gabriela Gonçalves como a Sra. Botard, professora desiludida com os rumos da educação, é o singelo apelo pela melhoria do ensino brasileiro. Na mesma repartição pública está a secretária Daisy (Luísa Valente) que surda aos apelos de Berenger (o vigoroso Rubens Alexandre) – último homem que resiste bravamente à metamorfose -, decide tornar-se rinoceronte em lugar de se dedicar ao culto à beleza, com suas cirurgias plásticas e afins.
O duplo solo final traz de um lado a auto violência do rinoceronte branco interpretado por Viviane Almeida (em primoroso trabalho corporal) e, concomitantemente, a inevitável metamorfose de Berenger.

Ainda ouço ecos da música final da peça implorando “mas não me deixe virar rinoceronte” enquanto o elenco conduz o público, em cortejo, à rua, e fico aterrorizado. Será que a mídia sem ética -a espalhar como verdade absoluta o que nem se confirmou como verdade parcial -, a retórica demagógica de tantos políticos, o ódio a determinado partido ofuscando o desejo do bem-estar social, a intolerância ao diferente de nós alicerçadas numa doentia intepretação dos livros sagrados, será que a deformação da realidade tornará os brasileiros rinocerontes? Torço para que você assista Canto Para Rinocerontes e Homens e, assim como eu, desperte sua consciência e pondere sobre as posições que toma.
CANTO PARA RINOCERONTES E HOMENS – Reestreia dia 7 de maio, sábado, às 20 horas no Galpão do Folias. Direção – Rogério Tarifa. Elenco – Gabriela Gonçalves, Guilherme Carrasco, Luísa Valente, Murillo Basso, Renan Ferreira, Rubens Alexandre e Viviane Almeida. Músicos – Bruno Pfefferkorn e Filipe Astolfi. Dramaturgia – Jonathan Silva, Rogério Tarifa e Elenco. Texto Original – O Rinoceronte, de Eugene Ionesco. Direção Musical e Preparação Vocal – William Guedes. Composição Musicas Inéditas – Jonathan Silva. Cenário – Rogério Tarifa. Assistência de Cenário – Elenco. Cenotécnico – Zito Rodrígues. Figurino – Silvana Carvalho, Rogério Tarifa e Elenco. Colaboração – Artur Abe. Consciência Corporal e Direção de Movimento – Érika Moura. Desenho de Luz – Rafael Souza Lopes. Operação de Luz – Nara Zocher. Vídeo – Flávio Barollo. Supervisão em Teatro de Animação – Luiz André Cherubini. Fotos – Cacá Bernardes. Recomendado para maiores de 14 anos. Duração – 180 minutos. Ingressos – R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia-entrada). Temporada – Sexta-feira e sábado às 20 horas e domingo às 19 horas. Até 29 de maio.
GALPÃO DO FOLIAS – Rua Ana Cintra, 213 – Campos Elíseos (próximo a estação do metrô Santa Cecília). Telefone – (11) 2122-4001. Capacidade – 99 lugares.