Kyra Piscitelli, do Aplauso Brasil (kyra@aplausobrasil.com)

SÃO PAULO – Assistir Oh os belos dias, em cartaz no Sesc Santana, é como uma terapia inconsciente (ou consciente) da essência e das contradições que somos nós: bichos homens. Por meio de um casal que vive em um buraco (ou serão dois?), localizado em algum tempo-espaço não definido de clima desértico, os dois buscam um sentido para a vida.
Sim, o cenário é esse mesmo: uma espécie de cratera com duas saídas: uma para Winnie (interpretada pela atriz Sandra Dani) e outra para Willie (interpretado por Luiz Paulo Vasconcellos).
O cenário é bem curioso e até enigmático em certo ponto. E nisso combina com a história – uma história sem começo, meio e fim ou lugar definido. Um teatro feito na palavra, na filosofia da própria vida e em todos os pensamentos que podem ser transformados no falar.

Mas antes de esmiuçar sobre a peça, voltemos ao cenário. Como ele fica no centro do palco, as plateias laterais (da esquerda e da direita) não têm uma visibilidade tão boa. Então, é importante ficar de olho na hora de comprar.
Agora, voltemos à peça. A tradução e direção de Rubens Rusche mostra como o artista é grande com Beckett. Ele que já dirigiu Katastrophé, Fim de Jogo, Beckettiana # 3 e Crepúsculo, comprova com Oh os belos diassua superioridade ao trabalhar com o autor irlandês.
A essência do teatro é a palavra. A interpretação segurada no falar e nos gestos (ainda que minimalistas). E é isso que Sandra Dani faz em cena. Coberta até a cintura (no primeiro ato), a atriz tem uma projeção de voz, uma clareza nas palavras e nos pequenos gestos (dentro do que é possível na condição) impressionantes.

Já no segundo ato, Dani aparece coberta até o pescoço – imóvel – e ainda assim com desenvoltura pronuncia cada entonação. Apesar de ter dois atos o espetáculo não é longo. São 2h horas, sendo o primeiro ato maior do que o segundo.
Acontece que em cena, Dani fala muito. O tempo todo, quase sem parar ou respirar. Já o personagem de Luiz Paulo fala quando precisa. É mais prático como os homens em geral. Tem seu momento de glória, mas só no final da peça.
No resto, o que se vê é uma Winnie falante em meio a um cenário absurdo e sem lógica. É como se nós (espectadores) entrássemos na cabeça dessa personagem. Afinal, quem nunca se sentiu enfiado em um buraco, em meio a uma rotina? Se por um lado, Winnie aparece para a plateia vivendo em um buraco no meio do deserto, em suas palavras, ela é uma otimista irrefutável.
Sim, e dai vem o título: Oh os Belos dias. É possível alguém que vive nessa condição ver algo belo? Para mim, isso tem cheiro de ironia, mas a graça em assistir Beckett é essa: ele mexe com a nossa cabeça, e a aflição que mora em mim pode não morar em você.
E para provocar essa sensação, o texto larga mão de um recurso interessante: a mesma frase é proferida por Winnie e também por Willie em momentos diferentes, em ordens diferentes e jeitos diferentes. É um espetáculo para atentos, para quem gosta de sair do teatro com uma pulguinha atrás da orelha.
Difícil imaginar esse espetáculo em um só ato. É muito texto. E a divisão é precisa e necessária, quando entendemos que no segundo ato os dois personagens mudaram de posição.

Os dois personagens de nome quase iguais na escrita e na fala é outro conhecido recurso do autor irlandês.
No espetáculo, Winnie parece viver sua rotina de forma feliz. Irritadamente feliz. Vive conformada vivendo um dia após o outro. Mas em alguns momentos, surge carente, irritada e até sem paciência. Mas, então, respira e desanda a falar.
No segundo ato, uma fala (que não sou capaz de reproduzir exatamente como foi dito) me chamou atenção. É quando Winnie diz a Willie que houve um tempo em que ela queria ajuda-lo, outro tempo em que ela o ajudou e que hoje ela não podia mais.
Quem nunca se sentiu assim, como Winnie? Quem nunca se sentiu enterrado em um buraco, sozinho e em um deserto? É possível com isso manter o otimismo?
Ficha técnica
Título: Oh os belos dias (Peça em 2 atos)
Autor: SAMUEL BECKETT
Direção e tradução: Rubens Rusche
Elenco: Sandra Dani e Luiz Paulo Vasconcellos
Cenografia: Ulisses Cohn
Cenoténico: Fernando Brettas
Iluminação: Wagner Freire
Figurinos e visagismo: Leopoldo Pacheco
Aderecista: Viviane Ramos
Assistente de direção: Cláudia Maria de Vasconcellos
Operação de luz: Alessandra Marques
Operação de som: Waldo Vicente
Fotografia: Jean-Charles Mandou
Vídeo e Programação Visual: Samuel Rusche
Produção executiva: Johanna Rusche
Coordenação de produção: Rubens Rusche
Duração: 110 minutos (2 atos, com intervalo de 10 minutos)
Serviço
Sesc Santana
Av. Luiz Dumont Vilares, 579
Tel.: 2971-8700
Metrô Jd. São Paulo
Sextas e Sábados às 21 horas
Domingos às 18 horas
Ingressos: 25 reais
Recomendado para maiores de 14 anos