Ruy Jobim, especial para o Aplauso Brasil (aplausobrasil@aplausobrasil.com)

Quem melhor do que um super-herói para abrir uma compota de palmito? É a pergunta de um milhão de dólares para a qual o lendário editor da Marvel, Stan Lee, sempre teve a resposta. Marcos Gomes, o dramaturgo, também se deparou com essa pergunta e se colocou a respondê-la em sua peça Basílio, O Destemido, sob direção de Marcos Loureiro, e que está em cartaz no Teatro da Memória do Instituto Cultural Capobianco, em São Paulo.
Fãs de quadrinhos de super-heróis, ambos, o autor Marcos Gomes (do recente Mariposas Não Sobrevoam Lâmpadas Halógenas) e o diretor Marcos Loureiro (de La Música) vasculham o universo lúdico daquelas vãs criaturas que são metade alienígenas, metade milionários, metade fotógrafos, mas que também são metade super-heróis.
A vida tece, vez ou outra, umas atrozes armadilhas no caminho dessas pessoas de identidades secretas e vidas duplas e que têm como missão escrita a ferro e a fogo em suas testas: salvar o mundo.
É o caso de Basílio, o super-herói que decreta, para o horror de todos, a sua própria aposentadoria, por mero tédio: ele pode perfeitamente saltar de cima de um edifício que não vai morrer. E nessa aposentadoria, os passos do herói o fazem entrar na escura caverna da hipocrisia humana.
Sob a iluminação e a direção de Loureiro, Basílio se despe. Há um quadro inicial de sua HQ particular, colocado na diagonal, chamado tecnicamente de “splash”, aquele mesmo em que o herói se apresenta e apresenta algum dilema por resolver. Aqui, ele cumpre a missão e resolve o dilema: tira o uniforme de herói, simplesmente, e sai da História para virar gente comum. Nisso, o mundo despenca à sua volta.
Entre os personagens – com todos os ingredientes possíveis e imaginários – estão um presidente afoito pelos holofotes da Imprensa, querendo tirar proveito político do super-herói; um casal que hora venera Basílio, hora o demoniza; o assaltante que tem o Código Penal na ponta da língua e, claro, a mocinha, a jovem e linda mocinha nada ingênua, mas que sabe seduzir o herói como ninguém.
Para dar vida a essa fauna urbana, foram convocados Walmir Pavam (que já havia trabalhado com Marcos Gomes, na montagem de B.O., em 2008) para compor um divertido e não menos patético Basílio, herói de ceroulas, aposentado como ele só e louco para simplesmente tomar um cafezinho na padoca mais próxima, como todo mundo faz. O lado humano que Basílio sempre quis está representado nas máscaras que vão caindo, uma a uma, da sociedade que precisa dele e que fica incrédula com essa tomada de decisão unilateral do herói.
Zeza Mota compõe uma divertida Dona Clô, sedutora e totalmente sem escrúpulos, uma mulher que parece ter mais saído de dentro da canção Geni e o Zepelim, de Chico Buarque (claro, como uma daquelas pessoas que jogam pedra). Javert Monteiro (que contracenava com Walmir Pavam em B.O.) faz diversos personagens, desde o porteiro do condomínio, Seu Geraldo, até o Presidente da República. Germano Melo está impagável na pele, entre outros personagens, do assaltante que parece especializado em vídeo locadoras, daqueles assaltantes que têm a infeliz tragédia de sempre se deparar com o super-herói em questão, aqui ou ali.
Edson D’Santana faz Agenor, o nada intrépido síndico do condomínio e marido da deliciosa Clô. Mas é Natinha, a filha do casal, interpretada por Roberta Uhller (de 32 Dentes e Doce Outono), que se torna o fiel da balança de Basílio, um dos motivos pelos quais todo o mundo do super-herói vira do avesso: ela é “de menor” e, nestes dias de puritanismos toscos e pedofilias baratas, dá pra se imaginar o que vem pela frente. Roberta, por sinal, está bem neste papel dado a ela, o melhor desde que ela atuou em 32 Dentes.
Nesse condomínio cênico, um pandemônio de vidas medíocres e também extraordinárias a seu modo, Marcos Gomes permite que seu elenco de personagens dê o devido momento para que cada intérprete brilhe (como muito bem pregou o professor, teórico e roteirista Jean-Claude Bernardet, a respeito da boa dramaturgia). O texto de Basílio, O Destemido surgiu em 2006 e foi contemplado com o apoio do ProAc (o Programa de Ações Culturais) da Secretaria de Cultura de São Paulo, em 2009, o que possibilitou o autor-produtor a levantar a montagem, para a Cia. dos Dramaturgos, da qual faz parte.
A luz, de Marco Loureiro, recria, intuitivamente, o contundente efeito dos quadrinhos do mestre Will Eisner (o criador genial de The Spirit e Avenida Dropsie), onde seus refletores quase a pino, em quase back-light, geram sombreados carregados, em determinados momentos do espetáculo. Luz e sombra, já nos ensinava outro mestre das HQs, o brilhante Milton Canniff (de Terry e os Piratas).
O olhar de raio-X de Marcos Gomes não vai em direção ao seu super-herói, mas sim na análise, na relativização do outro, pois nós também somos esse outro, em toda a nossa vã idiotice. Basílio é um espelho de Alice, é um universo que se abre para explorar a mente doentia da sociedade que o cerca e o encarcera como bicho de estimação. Prestem atenção, por exemplo, na cena do julgamento do herói. Assim, o texto ágil e despretensioso foi bem mastigado pelo encenador, que faz justamente dos espaços “em branco” entre cena e outra aquelas separações entre os quadrinhos de uma HQ.
Sim, o super-herói nosso de cada dia pode muito bem abrir uma compota de palmito, pular de prédio a outro, salvar gatinhos em árvores e beijar testa de criancinhas, mas pode ser gente também. É só o que Basílio quer. O duro é ele perceber que a sociedade não o deixa ser outra coisa senão ele mesmo, do jeito que as pessoas o imaginam e querem que ele seja. Basílio somos nós mesmos, e também somos os outros.
SERVIÇO
BASÍLIO, O DESTEMIDO
Texto: Marcos Gomes
Direção: Marcos Loureiro
Uma produção da Cia. dos Dramaturgos
Elenco: Walmir Pavam, Javert Monteiro, Edson D’Santana, Zeza Mota, Roberta Uhller e Germano Melo.
Sextas e sábados, 21h – domingos, 19h
Teatro da Memória do Instituto Cultural Capobianco (100 lug.) – tel. (11) 3237-1187
Rua Álvaro de Carvalho, 97 – Centro – São Paulo, SP
R$ 20
Estreou em 1 de maio. Até 30 de maio.