Kiko Rieser, especial para o Aplauso Brasil

O processo de feitura de uma obra de arte é premido por diversas circunstâncias que não concernem somente ao criador, mas que dizem respeito ao mundo mercantil em que a obra se inserirá. Profissão difícil e preterida pelos grandes poderes políticos e econômicos, a arte sempre passa por enormes dificuldades para conseguir se sustentar e se divulgar.
Em formas de manifestação artística mais artesanais, como o teatro, é muito comum um espetáculo chegar a ser inviabilizado por falta de dinheiro. Diversos artistas acabam precisando de uma profissão paralela para se manter e muitos dos que não a têm passam por inúmeros momentos de incerteza quanto a um futuro próximo, sempre sujeitos às instabilidades de um mercado exíguo e, muitas vezes, paternalista.
Quem vê uma obra de arte pronta pode não imaginar tudo que a envolve, não conseguindo, deste modo, vê-la em sua completude. Torna-se mister, portanto, evidenciar ao público leigo o que há por trás do mundo muitas vezes idealizado que cerca a arte e os artistas, tarefa essa que cumpre o espetáculo Side Man.

O texto de Warren Leight trata de tempo e lugar muito específicos: Nova York, meados do século 20. As rádios vêm ganhando cada vez mais importância e o rock está crescendo e se tornando um ritmo praticamente hegemônico. Neste cenário, os grandes músicos de jazz passam a ter cada vez mais dificuldades para conseguir se manter de sua música.
O que pode nos parecer uma realidade distante é, na verdade, muito atual, pois o mundo artístico se assemelha ao da moda na sua instabilidade, no sentido de que é feito de tendências, e algo que faz extremo sucesso logo em seguida pode se tornar obsoleto sob certo ponto de vista. Para mostrar isso, a peça acompanha a trajetória de Gene Glimmer, um side man, ou seja, músico de apoio.
Se há tantas dificuldades numa profissão escolhida por diversas pessoas, é porque também há extrema beleza em fazer de uma forma genuína de expressão um trabalho. Por isso, o universo que Leight constrói quando Glimmer ainda é um trompetista de sucesso é fascinante, repleto de histórias compartilhadas entre os músicos e de momentos poéticos quando o protagonista conhece Terry, com quem acaba se casando.
A união dos dois e a chegada de um filho coincidem com a decadência dos jazzistas. Além dos problemas econômicos, o que acontece é uma profunda degradação do prestígio de que esses músicos desfrutaram no passado. Glimmer passa a ser maltratado por contratantes e vê um colega ser preso e agredido. Essa crise profissional acaba se refletindo na vida pessoal do trompetista, desestruturando completamente sua família. É por esmiuçar não as particularidades daquele momento histórico, mas as implicações que essa transformação traz à vida do protagonista e dos outros músicos, que o retrato de Leight se torna atemporal.
O fascínio e a beleza da vida de artista são amplamente reforçados pela direção de Zé Henrique de Paula, que cria imagens a partir de quadros de Edward Hopper e Norman Rockwell, pintores que viveram na época em que se passa a peça e que muitas vezes retratavam a boemia e a vida noturna, tão caras aos músicos.
Para isso, o cenógrafo Jean Pierre Tortil concebe um cenário diferente para cada um dos diversos ambientes em que a ação se passa, buscando, deste modo, que cada um se torne especialmente atrativo visualmente. A iluminação de Fran Barros trabalha essencialmente com luzes laterais, criando uma atmosfera quase brumosa que acentua o clima feérico da montagem. As interpretações, todas representando personagens notívagos, seguem a mesma linha, com tons de sedução na voz, meio-sorrisos e troca constante de olhares.
Há, enfim, um empenho do espetáculo no sentido de tornar atraente o universo retratado, o que aumenta a força do contraponto com a decadência pela qual as personagens depois passarão, evidenciando o potencial que os artistas têm e que, muitas vezes, como na peça, é tolhido pelo mercado. Esse trabalho da encenação fica claro se forem justapostas as cenas em que os músicos em seu auge conversam animadamente no bar e aquela em que, já arruinados, eles ouvem em silêncio uma gravação de Clifford Brown.
Essa contraposição entre o apogeu do jazz e sua derrocada fica explícita na transformação do casal protagonista, a partir da degradação familiar que os leva a praticamente uma inversão de papéis. Otávio Martins, representando Gene Glimmer, é confiante e seguro no início, mas, conforme vai envelhecendo e seu corpo vai se curvando, ele se torna cada vez mais ingênuo, saudoso de um reconhecimento perdido. Sandra Corveloni, no papel de Terry, segue o caminho contrário, indo da ingenuidade a uma certa maturidade de ter os pés no chão quando a situação financeira se complica. São dois intérpretes que constroem seu desempenho em sintonia com a linha-mestra do espetáculo, explicitando, tanto no campo objetivo como no subjetivo, o impacto e a frustração que a mudança brusca na conjuntura acarreta.
Para o público leigo – a quem o espetáculo cumpre seu mais importante papel, o de evidenciar as agruras da profissão dos artistas – talvez continue parecendo uma realidade distante, já que Side Man é um espetáculo alicerçado em diversos patrocínios e apoios. Talvez uma produção menor refletisse melhor, no seu aspecto produtivo, o tema da peça. Entretanto, é motivo de contentamento que um trabalho sério como este possa ser feito com verba, remunerando toda a equipe e possibilitando a sofisticada estrutura que a obra tem. Se muitas vezes a dificuldade econômica para a realização artística faz parte da realidade, felizmente, neste caso, ela fica apenas no plano da ficção.
Obs.: Esta crítica é dedicada à memória de Alberto Guzik um dos maiores homens de teatro deste país. Vai deixar muitas saudades.
FICHA TÉCNICA
Autor: Warren Leight
Direção: Zé Henrique de Paula
Assistência de direção: Thiago Ledier
Elenco: Otávio Martins, Sandra Corveloni, Alexandre Slaviero, Eric Lenate, Luciano Schwab, Daniel Costa e Gabriela Durlo (stand-in: Marco Aurélio Campos, Davi Reis e Amazyles de Almeida)
Preparação corporal: Inês Aranha
Preparação vocal: Maria Silvia Siqueira Campos
Figurinos: Rogério Figueiredo
Cenários: Jean Pierre Tortil
Visagismo: Fábio Petri
Design de som: Fernanda Maia
Iluminação: Fran Barros
Cenotécnica: Paulo Branco
Assessoria de imprensa: Darlene Dalto
Design gráfico: José Edward Flaga
Produção: Zeca Souza Campos e Davi Amarante
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Side Man – Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153). Tel. (011) 3288-0136. Quinta e sexta, 21h30; sáb., 18h e 21h; dom., 18h. R$ 10/R$60. Até 01/08.