Afonso Gentil, especial para o Aplauso Brasil (aplausobrasil@aplausobrasil.com)

SÃO PAULO – Com tantas estréias acontecendo neste primeiro trimestre, duas presenças interessantes, as dos autores Leonardo Alkmin (Quarto 77) e Leo Chacra (Esconderijo), correm o risco de passar despercebidas. O que seria no mínimo injusto, face às boas qualidades dos seus trabalhos.
Vivemos tempos de babel estética e formalística, com muitos dos atuais diretores de grupo querendo “marcar território” nessa onda supostamente novidadeira, com releituras, desconstruções ou narrativas fragmentadas de preguiçosa criatividade. Realmente, é muito mais cômodo demolir, que recriar com os instrumentos da modernidade. Colocam, então, esses encenadores, autores consagrados de todas as épocas e todos os quadrantes na condição ultrajante de “mera paisagem” em suas discutíveis carnavalizações sem eira nem beira, onde impera o grotesco da graça(?) de mico de circo, entre outras enganações.
Daí o alívio ao nos depararmos com esses dois involuntários arautos do bom uso do palco como plataforma dos questionamentos existenciais, sociais e transcendentais que justificam a permanência do teatro como bússola civilizatória.
O PULSANTE REALISMO FANTÁSTICO DE QUARTO 77
Pouco conhecíamos de Leonardo Alkmin, autor deste instigante exercício de realismo fantástico, cartaz do Augusta 1. Em seu currículo desponta um premiado Cárcere Privado, nas antigas Jornadas SESC de Teatro. Antes Alkmin cursou Artes Cênicas na ECA/USP, mas não há informação em qual delas se formou.
Este Quarto 77, nas mãos competentes do veterano Roberto Lage, já teve uma 1ª. montagem em 2004, quando recebeu indicação para o Shell de melhor autor. Novamente o programa da peça é avaro em pormenores sobre essa montagem. Mas, o que interessa é saudar o reaparecimento desse autor bissexto mais preocupado com o vigor das palavras do teatro narrativo, dialógico.
Mesmo “preso” às convenções dramatúrgicas tradicionais, Alkmin consegue recriar, com maestria, uma atmosfera onírica, próxima do universo surrealista e assombrado de Kafka.Em um cenário decadente, úmido e certamente mofado, com direito a cachorros latindo no meio da noite, somos jogados, como o Homem sem nome, o protagonista, num pesadelo onde a realidade é sinônimo de ficção e a partir da aparição inesperada de uma Mulher, embates tragicômicos entre ambos se sucedem em espiral alucinatória, que acabam sempre em suposta derrota da parte feminina.
O mistério paira permanente na atmosfera: quem é aquele homem? De onde veio? Para onde quer ir? De que culpa se martiriza? E por que aquela mulher, que se refaz exatamente igual após cada golpe fatal? Paulo Goulart Filho, no protagonista, esbanja domínio da expressão corporal, alem de impressionante controle vocal, atuando todo o tempo em registro de thriller de alta voltagem, em cumplicidade com a segura condução do diretor Lage.

À Maria Laura Nogueira, poder-se-ia pedir um tipo físico mais próximo da visão masculina de sensualidade esperada do
“eterno feminino”. Mas, não compromete o salto sem rede em que se arremessa Goulart Filho.
Para conferir, sem medo.
ESCONDERIJO
Já em fim de temporada (até domingo, 25) essa peça revela em Leo Chacra um autor de singular personalidade no lidar com um assunto que parece longe da sua idade cronológica: a ditadura do golpe militar de 1964. Desta vez, os desdobramentos passionais entre participantes da luta armada, no auge da resistência popular, focando-se em 2 mulheres. Ambas envolvidas, sucessivamente com um mesmo guerrilheiro (ausente, já que está preso durante a ação da peça) e um quarto e enigmático personagem.
Com diálogos tensos, que remetem ao Sartre de “Entre Quatro Paredes” (do célebre “o inferno são os outros”), as personagens se debatem num inferno particular de ciúme e de acusações mútuas de alienação política, que vão desaguar em final inesperado, bem resolvido dramaturgicamente.
Se o texto entusiasma, o espetáculo nem tanto. Faltou à direção (do próprio autor) uma condução mais homogênea do elenco e uma supervisão mais atenta aos trajes femininos, alguns fora da época.
No todo, a boa feitura do texto justifica uma ida à salinha 2 do Teatro Augusta.
Serviço
QUARTO 77 – Teatro Augusta – Rua Augusta, 943, Consolação. / 302 lugares / fone 3151-4141 / 6ª. 21h30, sábado 2lh, domingo 19h ; R$ 50,00 / 70 minutos /14 anos / até 8 de abril
ESCONDERIJO – Teatro Augusta, sala 2 / mesmos horários de “Quarto 77”/ 75 minutos /12 anos/R$ 30,00 / até 25 de Março!